domingo, 23 de dezembro de 2007

Culpados

Eu vi um guri ontem bater a sua porta e você nem atender.
Viu pelo esquema de segurança que um mendigo parecia ser.
Ele insistiu mas triste saiu a lamentar.
E você? Não vi, deve ter ido sossegado descansar.
É verdade, esta gente cansa...
Meio dia, sol escaldante. O asfalto estalava como brasa.
Ele a se queimar e você acondicionando o ar.
Estômagos fartos, sede saciada... [da proteção pra dentro.]
Do outro lado, gases ecoam no vazio gastro, sujeira endurece como cimento.
Há olhos que enxergam o que lhes pertencem, outros o que lhes interessam,
À sombra do desinteresse refresca o acontecimento conseqüente!
...
Os dois caminharam juntos até chegar à ponte. Para ambos, a felicidade.
Quase nada em “casa”, repleta de humildade.
...
Havia polícia naquele quarteirão e nos demais adjacentes...
- Foi seqüestro! O bandido esteve aqui! Ajam, incompetentes!
...
[Recorte de jornal]
Polícia afirma que o seqüestrador pediu uma fortuna para o resgate. O pedido foi negado! Negociações puseram fim ao clima de tensão que reinava visivelmente entre os pais da vítima. O acusado saiu com vantagem: pôde então escolher se preferia prisão perpétua ou pena de morte.
...
- Mas pai, me ouve!
- Calado que até assim você está errado! Você já criou problemas demais... Quer mais dinheiro, não é? O que fez com o dinheiro que te dei pra comprar carro, roupas de marca e luxar nos lugares mais caros do mundo com quantas vagabundas quiser? Irresponsável! Deve estar consumindo em fumaça...
- Pai?
...
E foi em silêncio que a conseqüencia se manifestou...
...
Ninguém quis me ouvir, então cansado me entrego a morte que fará nascer a culpa que te libertará... Eu poderia ter dito, se tivessem me ouvido, que fui eu que bati na porta de casa, cansado, esfomeado, esfarrapado e envergonhado por ter sido assaltado, que em vez do meu “pai” me reconhecer foi capaz de testemunhar que as características de um suposto bandido correspondiam fielmente as que ele “presenciou” no sujeito que rondava a mansão mais cedo, que, sentindo-me frágil e desamparado, aceitei a sua companhia e um abrigo enquanto recuperava a noção das coisas e enganava o estômago que ao descolar suas paredes aliviava a minha dor físical e moral, que você, ao longo dos anos em que vivi, foi a única pessoa que me lançou um olhar gentil, amável e sincero e mais que isso, alguém que assumiu calado uma culpa que nunca teve (por mim), a culpa de ter nascido “pobre” e por conseqüência, não ter direito a voz... Eu poderia ter dito se culpa nenhuma também tivesse... Mas desculpa...

Um comentário:

Critical Watcher disse...

O poder de seu texto me maravilha.
Você é excelente. Sem hipocrisia alguma, como é-me comum, agradeço pelas lindas palavras.

Parabéns...